quinta-feira, 13 de novembro de 2003

RECORDAÇÕES DO MEU PAI (III).
Desde que tenho memória de mim, o estatuto profissional do meu Pai foi sempre algo de misterioso.
Lembro-me, muito puto, de ele trabalhar numa companhia de aviação comercial, depois trabalhou numa agência de viagens. Chateou-se com tudo isto e lembrou-se de criar, publicar, distribuir e vender uma revista. Isto granjeou-lhe alguns conhecimentos importantes e a partir daí começou a viajar. Quando regressava das longas viajens, fechava-se num quarto, forrado de enciclopédias, dormia de dia, trabalhava de noite e escrevia, publicava, distribuía e vendia os livros produzidos pela experiência das suas viagens (pequenas edições que valem hoje um balúrdio!).
Lógicamente, vivíamos sempre à "rasquinha de massas", mas na verdade isso nunca foi grande preocupação lá em casa. Como quando estava em processo criativo, mal saía do seu quarto, adoptou como "farda" um tipo de fato-de-macaco à Mao Tse Tung, que entendia ser mais confortável, fácil de lavar e incomensurávelmente mais barato. No entanto, sempre que alguém referia a indumentária, apressava-se a esclarecer: "Nada de confusões! Eu sou Salazarista convicto!" e era-o!
Uma vez tive de preencher um qualquer formulário para uma qualquer finalidade. Ao sêr-me perguntada a profissão da Mãe, não hesitei e escrevi "doméstica", à pergunta correspondente, relativa à profissão do Pai, hesitei um pouco e perguntei-lhe o que haveria de escrever. Após uns segundos de reflexão, olhando para as enciclopédias que repousavam nas estantes, esclareceu-me com alguma desplicência: "Pode escrever aí que sou Técnico de Cultura Geral."
Nunca mais tive dúvidas acerca da sua profissão.
E era assim o meu Pai...

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 13 de Novembro de 2003

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