terça-feira, 18 de novembro de 2003

O SERVIÇO DE LOUÇA CHINESA.
Wong Li era um respeitado ancião, que toda a vida tinha pintado fínissimos serviços de louça. Pelas suas mãos carcomidas, haviam passado muitos milhares, senão centenas de milhar de peças de delicada porcelana, que ele, com traços certeiros, quase automáticos, pintava com os tradicionais motivos da louça de Cantão. Os desenhos eram tão parecidos que passavam por iguais, dando assim uma identidade própria a cada serviço, mas simultâneamente com pequeníssimas e subtis diferenças que faziam de cada peça um objecto único e precioso.
Entretanto os anos foram passando, novos artesãos surgiram, apregoando novas técnicas e novos motivos. O trabalho começou a escassear para Wong Li, que todos os dias, impreterívelmente, cumpria o ritual de atiçar o fogo que há tantas dezenas de anos habitava no seu forno de cozedura. Os amigos perguntavam-lhe para que se dava ele a esse trabalho e Wong Li, pensativo, respondia invariávelmente que não poderia adivinhar quando teria uma nova encomenda e portanto tinha de têr o forno sempre preparado.
O tempo foi passando e Wong Li tornou-se alvo da chacota dos mais novos, que viam nele um velho excêntrico e já com pouco juízo, alvo perfeito para partidas e pequenas maldades.
Um dia, inusitadamente, chegou uma encomenda. Uma enorme encomenda! Os carros transportando a fina porcelana branca começaram a parar à porta de Wong Li e a retirar do interior do fêno macio as várias peças que constituiam o serviço. Eram ao todo oitocentas e cinquenta peças, entre pratos, tigelas, terrinas, travessas, chávenas e outras peças. Wong Li correu a atiçar o forno, a preparar os pinceis e pigmentos, e rápidamente começou a trabalhar.
Escolheu um desenho elaborado, trabalhoso e demorado.
Um amigo veio-o visitar e ao ver a pilha de loiça que esperava pintura e cozedura e a lentidão com que o trabalho se processava, perguntou a Wong Li por que aceitara o trabalho. De facto, tendo já o velho artesão mais de oitenta e cinco anos e não sendo senhor de uma saúde famosa, provávelmente não iria conseguir acabar o trabalho e por consequência, não receber o justo pagamento pela sua arte.
Enquanto o pincel deslizava com maestria e fluidez pela porcelana branca, dando corpo a maravilhosos pássaros, longinquas montanhas e paisagens campestres, Wong Li, sem levantar os olhos do que estava a fazer, respondeu numa voz muito calma: "Sabes, como em tudo na vida, o essencial é começar..."

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 18 de Novembro de 2003

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