segunda-feira, 29 de setembro de 2003

POESIA TRANSCENDENTE.
Não posso deixar de partilhar um dos textos mais bonitos e abrangentes que conheço. Talvez o devesse reproduzir na sua forma original, ou seja, em lingua francesa. No entanto, a sua dimensão aconselhou a tradução, que não estando perfeita, pelo menos transmite as grandes linhas de força que o autor lhe imprimiu:

Aquele que aborda o coração dos outros pelo canto cumpre a posse da carne para a criação: É um mistério de amôr e como todos os mistério de amôr, vai em direcção a um certo conhecimento de um polo do Homem, mas de um polo orientado para o canto. Se não entrais nas almas pelos caminhos que levam ao canto, os que vivem de vós, quando vos encontram, e os que vos oferecem parte de si próprios para viver, serão os únicos eleitos da consciência do canto? Sê-lo-ão primeiro porque estão mais próximos, seguem o Outono, são sensíveis às ressonâncias e atingem convosco os limites. Estão lado a lado no leito do rio que abristeis, partilham e comungam. Mas os outros, os que nunca estão do lado da poesia, será preciso pô-los à margem de qualquer conhecimento, se o desejo de aventura vos leva a procurá-los? Se a caridade vos pede para não os pôr à margem do amôr?Estais limitados por isso?
Há Seres que não têm o sentido do canto e outros que o perderam. Há incompreensões naturais e defesas voluntárias escolhidas pela razão, numa aparência de equílibrio, por desprezo daquilo que eles chamam o imaginário. São terras difíceis, onde os ventos não passam, que perderam o sentido dos jogos, da frescura da infância, dos prolongamentos que ultrapassam o quadro. Mas será conhecê-los defini-los com palavras? Podereis julgá-los de fora como eles vos julgaram? A posse da carne é impossível e não entreis neles se eles não entrarem em vós.
Lembremo-nos do tempo em que íamos à descoberta de nós próprios.
Lembro-me dos polos que se orientavam diferentemente, dos caminhos que levavam a sentidos diferentes, das vozes que não se podiam conciliar. Encontro-me hesitante entre dois prazeres, em que um é a ausência do outro. Dobrámos nós à poesia os polos que a desprezavam? Fizémos nós realmente cantar todo o Homem, esse pequeno filósofo absurdo que queria conhecer tudo do alto da montanha, esse irónico passante que não sentia a sua esterilidade entre as coisas que nasciam? Vivemos a experiência desses o bastante para sofrer com ela. De nada serve impôr a poesia. É por admiração que vós os chamais? Por desejo de domínio que tentais conhecê-los?
Não sois levados por um amôr de dilecção, mas por comunhão do mistério. Ouço-vos dizer que pensais englobar o desconhecido nesta palavra. Que a aplicais a todas as coisas estranhas, todos os acasos e todas as noites. Justamente era o termo que não se devia aplicar diante deles porque longínquo, vago e fácil demais, e no entanto é bem aquele que impusestes aos polos interiores que não o queriam admitir. Não pertenceis aos raros Seres que vivem de mistérios particulares, os mistérios originais do Homem, tão comuns a todos os homens, o estado da criatura, a paragem do conhecimento, a morte. E também outros que pertencem aos seu sofrimento e ao amôr, à alma fechadas e suas fronteiras, ao estremecimento do espiritual sobre a terra. Já não tendes necessidade do seu estado de poesia para conhecer os homens. Conheceis o seu mistério porque sois homens e tentais exprimi-lo pelo canto. Que vosso canto não ressoe nalguns deles,que baste para vossa satisfação; estabelecereis a sua base de outra forma, talvez de coração a coração, talvez pela inteligencia ou pela oração. Assim não estarão fora dos vossos caminhos embora não vos compreendam quando cantais, estarão ligados a vós pelo mistério da criatura e se nunca o sentiram vivo, será preciso dar-lhe tudo o que o anima.
Tudo isto acontece porque eles escolheram um polo para dominar os outros, para julgar os outros.
Não se trata de inteligência, de vontade, de essência e faculdade do amôr. O Homem não é divisível nessas partes. Tratam-se de polos que formam um feixe com mais ou menos destes elementos. O mais alto não é o mais puro segundo um julgamento humano, mas aquele que conhece a existência das coisas sem julgar por si o que é bem ou mal e talvez este julgamento se alargue sobre os outros, infelizmente sem ter necessidade de poesia.
Porque há tantos desesperados, eles dizem: Se conhecesses um pouco melhor o sofrimento, se estivesses no coração do sofrimento não terias tomado este tom nem escrito este livro, porque nós não somos senhores do lugar em que nos colocamos, as nossas impotências e fadigas gastaram-nos. Se pudesses viver as horas de cada dia sobre a Terra...
Esses, amai-os mais loucamente do que aos outros, não os compreendais e dizei-lhes para erguerem os sofrimentos como se tivessem um pouco de esperança.
O mistério do amôr de tal maneira foi dado ao homem, que ele próprio o pode dar.

Patrice de La Tour du Pin


Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 29 de Setembro de 2003

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