Teria eu
cinco ou seis anos quando fui confrontado com o meu primeiro enigma.
Era um inverno rigoroso e após o jantar a família tinha-se reunido em volta da
lareira. Na altura, na ausência de TV ou outro tipo de distracção , a conversa
era previlegiada e cultivada. Após uns momentos fitando as chamas que lambiam
as paredes enegrecidas da lareira, o meu Pai inquiriu-me: "Sabe qual é a melhor maneira de caçar jacarés?" Fiquei embasbacado com a pergunta, e
considerando que a resposta teria de ser mais sofisticada do que a simples
solução de dar um tiro no animal, ou meter-lhe um pau na boca, como vira
recentemente nas aventuras de "Tintin au Congo" - ainda não havia livros traduzidos - confessei a minha ignorância
sobre o assunto.
Com um sorriso até às orelhas o meu Pai explicou-me então a sua visão de como
era mais fácil apanhar um jacaré. Em primeiro lugar teríamos de nos munir de
alguns objectos, a saber, um livro realmente chato, um binóculo, uma pinça e
uma caixa de fósforos.
o caçador deveria então deslocar-se para a margem de um rio onde houvesse
jacarés, e depois de dispor os utensílios à sua volta, pegava no livro
realmente chato e começava a lê-lo. Como o livro era de facto chatíssimo,
acabaria então por adormecer. Entretanto o jacaré saía do rio na sua direcção, e ao abrir as terríveis fauces soltava um rugido.
Acordando em
sobressalto, ainda estremunhado, o caçador pegava nos binóculos para ver o que
se passava, mas como estava ainda desorientado pelo despertar súbito e inesperado,
pegava neles ao contrário e então via um animal pouco maior que uma lagartixa.
Pegava então na pinça e cuidadosamente colocava o jacaré na caixa de fósforos.
Confesso que a história me fascinou por duas razões: Pela sua criatividade por
um lado e pela sua inverosimilhança pelo outro.
Durante anos este pequeno "fait divers" da minha infância andou
escondido pelas recônditas volutas do meu córtex cerebral, até que há algum
tempo o recordei, com uma certa nostalgia por esses tempos de inocência.
Olhando à minha volta com atenção, parece-me descortinar uma legião
de pessoas que parecem ter um par de invísiveis binóculos colocados ao
contrário, sem ao menos se darem conta disso.
Para essa gente, a realidade é
tão virtual como a diminuição da imagem transmitida por binóculos invertidos.
Tudo lhes parece ao alcance da mão e tudo lhes parece realmente tão pequeno,
quantitativamente, que parece ser fácil de colocar numa caixa de fósforos.
No fundo é uma sociedade que perdeu todo o sentido de perspectiva, que não valoriza
o que tem e inveja aquilo que não tem.
Presas da sua tremenda ambição, vítimas dos seus êrros de prespectiva, esta
gente deambula pelo mundo previlegiando o "ter" em vez do
"ser". Esquece regularmente as suas obrigações para com o próximo,
mesmo quando o próximo é realmente "próximo" como sejam pais, filhos,
etc...
Estes pobres caçadores de jacarés, para sua infelicidade, não se apercebem
de que mais tarde ou mais cedo vão ter de abrir a caixa de fósforos sem se
lembrarem de colocar os binóculos invertidos, e nessa altura, na sua
dimensão real, o jacaré decerto não lhes irá perdoar.
3 comentários:
Excelente texto. Com a ironia característica dos Eça, mas simultaneamente, quase poético.
História muito engraçada, essa do sr seu pai.
História muito engraçada, essa do sr seu pai.
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