Nesse simpático “boteco”, costumava lá estar sentado a uma
mesa, um rapaz novo, de ar triste, sempre à volta com leituras e tomando
apontamentos num caderno de capa já muito surrada.
“Mora aqui perto”, informou-me certa vez o proprietário, “é
de gente rica, mas é meio amalucado, o coitado.”
Nada me poderia ter despertado maior curiosidade, e assim
não descansei enquanto não meti conversa com o Fábio, assim se chamava ele.
Descobri um rapaz melancólico e introvertido mas de uma curiosidade imensa. Os
livros que lia já não eram normais nem para a época, nem para a idade: Descartes, Rosseau, Nietzsche
e até Fernando Pessoa, entre outros.
A conversa foi ficando fácil, e passados uns dias já
discutíamos animadamente temas filosóficos ligados à metafísica e à ontologia,
como se esses “brain storms” durassem já há largo tempo. Um dia perguntei-lhe
porque não estava na universidade. “Para quê” respondeu ele enfadado “lá só
ensinam besteiras.”
Um dia deixou de aparecer.
Informou-me o proprietário da “lanchonete” que os pais o
tinham internado numa instituição de saúde mental que não distava muito dali.
Um Domingo fui visitá-lo.
Sentado num banco do grande
jardim relvado e povoado de árvores decorativas, ele, surumbático, continuava
agarrado aos seus livros. Não se entusiasmou com a minha presença, mas também
não se sentiu incomodado. Após um silêncio um tanto embaraçoso, perguntei: “Então
Fábio, porque o puseram aqui?” Com uma certa amargura na voz, fixou os olhos no
céu acinzentado, e respondeu-me com siceridade: “Tive azar, cara. Repararam em
mim!”
Já a caminho de casa continuava a meditar naquela resposta
tão simples e tão verdadeira, e no intimo pensei na sorte que tinha em não terem
ainda reparado em mim.
Na realidade, a mente humana é demasiado complexa para que seja possível traçar uma linha definida entre a total sanidade e um estado patológico.
As várias dimensões, cognitivas, emocionais, comportamentais e tantas outras que percorrem incessantemente as volutas do nosso cortex cerebral,
geram um tal leque de variáveis que, como diz o Povo na sua imensa sabedoria, de
génio e de louco todos temos um pouco.
Alguém de quem eu muito gostava e que sofria de uma grave
esquizofrenia, disse-me um dia: “Os paranoicos constroem castelos no ar, os
esquizofrénicos moram lá dentro e os psiquiatras afadigam-se à procura das
chaves.”
Presa destas considerações, vou disfarçando a minha
presença, não vão um dia, por azar, finalmente reparar em mim.
2 comentários:
Eles só reparam quando "os nossos castelos" são melhores do que os deles...
Obrigada querido. Tão bem escrito também.
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