RECORDAÇÕES DO MEU PAI (IV)
Na linha de outros posts sobre este assunto (se alguem os quiser consultar poderá procurar nos arquivos de Novembro, entre os dias 12 e 13), apetece-me hoje falar do meu Pai, de quem tenho cíclicamente dolorosas e verdadeiras saudades.
Quando eu era criança, um amigo muito querido lá de casa oferecia todos os anos o pinheiro de Natal. Era sempre um abêto, nativo da Serra da Cabreira, muito bonito, bem formado e com dimensões bastante consideráveis. Igualmente todos os anos, o referido abêto era colocado com as suas parcas raízes num vaso com a ideia de que iria posteriormente ser plantado no jardim. E não há dúvida que todos os anos, a transplantação, acompanhada de um certo ritual, era formalmente executada. Na realidade, nenhuma das árvores sobreviveu ao ar frio e fortemente marítimo que sempre nos assolava o jardim a partir do mês de Janeiro.
Um ano a árvore era maior do que o costume. Imediatamente se instalou a discussão de como iria ser instalada, já que a sua altura era superior ao pé-direito da casa.
Corta-se-lhe o tôpo, alegava a minha Mãe, "Nem pensar!" retorquia ele, afirmando que isso desfiguraria a árvore.
Então corta-se por baixo, aventei tímidamente eu. "Está doido? E vamos destruir-lhe as raízes? Como a plantaremos depois?"
O impasse parecia instalado até que surgiu a ideia luminosa: A casa era térrea, com soalho de madeira sobre uma caixa de ar, portanto com um machado partiram-se umas tábuas no canto da sala e lá se encaixou o enorme abêto, sem lhe danificar o tôpo ou as raízes.
Passou o Natal.
A árvore, como as outras transitou para o jardim e lentamente faleceu, até se tornar num lenho sêco e enegrecido.
No canto da sala, o buraco aberto para salvar a árvore permaneceu.
Cuidadosamente dissimulado por um tapête, foi resistindo ao tempo. De inverno, o frio penetrava por ele, obrigando-nos todos a ficar mais junto da lareira enquanto o meu Pai resmungava acerca de um pertenso carpinteiro que ele nunca chamara.
Um dia, anos mais tarde, uma tia nossa, desavisada, caíu no buraco. Foi um sarilho! Ficou magoada, barafustou, gritou e acabou no hospital transportada por uma ambulância tão barulhenta como ela.
Nesse dia, com ar grave e severo, o meu Pai tomou uma decisão: "Temos de mudar de casa!"
Dois ou três meses depois mudámos de casa, deixando definitivamente para trás um buraco nêgro e traiçoeiro no soalho, além de vários cadáveres de árvores de Natal espalhados pelo jardim.
E era assim o meu Pai...
Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 20 de Fevereiro de 2004
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