quarta-feira, 25 de fevereiro de 2004

ESTUPEFACÇÃO E DESGOSTO.
Por que acho que não devemos ignorar a unica certeza da Vida, tenho-me regularmente pronunciado algumas vezes sobre a morte. Comentei-a quando a vi rondar a vida de um dos meus netos quando ele foi atropelado, comentei-a também aquando a trágica morte em directo do futebolista Miklos Fehér. Falei mesmo sobre a lenda do encontro em Samarcanda, que é o paradigma da sua inevitabilidade. Todos estes comentários sempre partiram do princípio que é da natureza humana a luta pela vida, a luta contra a morte.
Infelizmente nem sempre é asssim.
O filho de um grande e velho amigo, um rapaz saudável, educado e sociável, embora reservado, decidiu, assim sem mais nem menos, pôr termo à sua vida.
Fazia um mês de diferença da minha terceira filha, exactamente vinte e nove anos. Lembro-me de quando nasceu e uma fotografia tirada no calçadão de Copacabana lembrou-me que bonito bébé ele era. Cresceu, foi bom aluno, tirou o seu curso de Psicologia e arranjou um emprego a que se dedicava com afinco. Tudo parecia ir bem.
Na noite de Sábado de Carnaval, após o jantar, disse aos pais que ia dar uma volta e só se voltou a saber dele quando o seu cadáver foi encontrado dilacerado pelas rochas da encosta norte da Ponte da Arrábida.
A camara de vigilância de um estabelecimento próximo registou a chegada do automóvel. Arrumou-o cuidadosamente, retirou a antena do rádio e guardou-a no porta luvas, depois fechou o carro e ao afastar-se saíu do raio de acção da referida câmara. Sabe-se agora o desfecho de tão trágico passeio.
Algumas reflexões prepassam na minha cabeça: Não as suas razões, pois essas levou-as com ele, o que me atormenta é imaginar a dôr interior, a angústia e o sofrimento que poderão levar alguém a tão tresloucado acto e só essa reflexão por si própria, provoca-me um imenso desgosto.
Diz-se muita vez que o suícidio é uma fuga, que é um acto inútil. Talvez, no entanto deve haver um limiar de sofrimento intímo e silencioso que parece legitimá-lo.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 25 de Fevereiro de 2004

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