segunda-feira, 24 de setembro de 2012

ACERCA DE COMO CAÇAR JACARÉS.


Teria eu cinco ou seis anos quando fui confrontado com o meu primeiro enigma.
Era um inverno rigoroso e após o jantar a família tinha-se reunido em volta da lareira. Na altura, na ausência de TV ou outro tipo de distracção , a conversa era previlegiada e cultivada. Após uns momentos fitando as chamas que lambiam as paredes enegrecidas da lareira, o meu Pai inquiriu-me: "Sabe qual é a melhor maneira de caçar jacarés?" Fiquei embasbacado com a pergunta, e considerando que a resposta teria de ser mais sofisticada do que a simples solução de dar um tiro no animal, ou meter-lhe um pau na boca, como vira recentemente nas aventuras de "Tintin au Congo" - ainda não havia livros traduzidos - confessei a minha ignorância sobre o assunto.
Com um sorriso até às orelhas o meu Pai explicou-me então a sua visão de como era mais fácil apanhar um jacaré. Em primeiro lugar teríamos de nos munir de alguns objectos, a saber, um livro realmente chato, um binóculo, uma pinça e uma caixa de fósforos.
o caçador deveria então deslocar-se para a margem de um rio onde houvesse jacarés, e depois de dispor os utensílios à sua volta, pegava no livro realmente chato e começava a lê-lo. Como o livro era de facto chatíssimo, acabaria então por adormecer. Entretanto o jacaré saía do rio na sua direcção, e ao abrir as terríveis fauces soltava um rugido.
Acordando em sobressalto, ainda estremunhado, o caçador pegava nos binóculos para ver o que se passava, mas como estava ainda desorientado pelo despertar súbito e inesperado, pegava neles ao contrário e então via um animal pouco maior que uma lagartixa. Pegava então na pinça e cuidadosamente colocava o jacaré na caixa de fósforos.
Confesso que a história me fascinou por duas razões: Pela sua criatividade por um lado e pela sua inverosimilhança pelo outro.
Durante anos este pequeno "fait divers" da minha infância andou escondido pelas recônditas volutas do meu córtex cerebral, até que há algum tempo o recordei, com uma certa nostalgia por esses tempos de inocência.
Olhando à minha volta com atenção, parece-me descortinar uma legião de pessoas que parecem ter um par de invísiveis binóculos colocados ao contrário, sem ao menos se darem conta disso.
Para essa gente, a realidade é tão virtual como a diminuição da imagem transmitida por binóculos invertidos. Tudo lhes parece ao alcance da mão e tudo lhes parece realmente tão pequeno, quantitativamente, que parece ser fácil de colocar numa caixa de fósforos.
No fundo é uma sociedade que perdeu todo o sentido de perspectiva, que não valoriza o que tem e inveja aquilo que não tem.
Presas da sua tremenda ambição, vítimas dos seus êrros de prespectiva, esta gente deambula pelo mundo previlegiando o "ter" em vez do "ser". Esquece regularmente as suas obrigações para com o próximo, mesmo quando o próximo é realmente "próximo" como sejam pais, filhos, etc...
Estes pobres caçadores de jacarés, para sua infelicidade, não se apercebem de que mais tarde ou mais cedo vão ter de abrir a caixa de fósforos sem se lembrarem de colocar os  binóculos invertidos, e nessa altura, na sua dimensão real, o jacaré decerto não lhes  irá perdoar.

3 comentários:

Ana Maria disse...

Excelente texto. Com a ironia característica dos Eça, mas simultaneamente, quase poético.

Ana Maria Coelho disse...

História muito engraçada, essa do sr seu pai.

Ana Maria Coelho disse...

História muito engraçada, essa do sr seu pai.