segunda-feira, 2 de fevereiro de 2004

A RAPÔSA E AS UVAS.
Decerto que todos conhecerão a famosa fábula da rapôsa que tenta esforçadamente chegar a um cacho de uvas numa latada. Ao constatar a impossibilidade, conclui: "Estão verdes, não prestam!" e apressa-se a seguir o caminho. Nessa altura cai uma parra, e ouvindo o ruído, pensando tratar-se de uma uva, a rapôsa vira-se num guloso ápice.
É uma fábula velha como o tempo e que todos lemos em alturas diferentes da nossa vida e na qual tanta vez nos estribamos para critícar os outros.
Aparentemente fui fazendo uma série de escolhas ao longo da Vida, escolhas que fui sublimando numa espécie de pensamento filosófico global, e que tem servido de suporte a um alargado conjunto de posições morais que de certa maneira tenho vindo a pregar, não sem uma pontinha de soberba.
São posições sobre a minha forma de estar e de encarar a Vida, sobre as quais muitas vezes me manifesto, por vezes com alguma sobranceria, arrogando para mim uma certa superioridade moral.
Há tempos, por exemplo, discutia com um amigo meu o fenómeno do consumismo. No fundo, dizia eu, embora difíceis, as minhas escolhas tinham-me levado para um caminho que contrariava toda a cultura de consumismo que me rodeava, contentando-me eu apenas com o pouco necessário para levar uma vida digna, etc...
À noite, naqueles momentos de meditação que antecedem o sono, lembro-me amiúde da fábula da rapôsa e das uvas. Será que escolhi mesmo? Será que foi uma escolha assumida ou apenas um mero mecanismo de defesa, criado por alguém que de facto não conseguiu atingir os patamares materiais de quem o rodeia? E se me saísse uma lotaria, seria a mesma pessoa?
Eu gostava de acreditar que sim, mas a dúvida, há anos instalada, parece impossível de derimir.
Até que ponto somos senhores das nossas escolhas? Até que medida nos podemos orgulhar de nós próprios? Até que ponto não seremos simples joguetes de complicados mecanismos psicológicos criados para nos manter equilibrados?
De qualquer forma, se o caso fôr esse, a existência de um mecanismo tão paliativo dá-me a prova insofismável da suprema sabedoria e bondade do Criador que tão engenhoso dispositivo instalou em nós, protegendo assim a integridade psicológica da sua criação, tal como um electricista coloca um fusível para proteger o resto de uma complexa instalação eléctrica.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 2 de Fevereiro de 2004

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