sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004

A MORTE DO DINOSAURO (Fábula acerca da auto-extinção)

O grande predador bateu com a cauda no chão, enquanto que com uma das pequenas mãos tentava evitar que um parasita se lhe entranhasse na pele escamosa. O seu aspecto era deplorável. As escamas, antes brilhantes e coloridas, apresentavam-se acizentadas e baças, deixando entrever por baixo um esqueleto que anteriormente se escondia atrás de uma portentosa massa muscular. As garras há muito tinham deixado de estar aceradas e temíveis, esboroando-se e partindo-se por manifesta falta dos minerais necessários.
Com melancolia o enorme animal fitou a paisagem desolada que se desdobrava perante a sua vista. Uma terra calcinada pelas geadas, pontilhada ali e acolá por alguns arbustos mais rústicos. As colónias de liquens emprestavam um tom amarelado a algumas manchas esparsas, no meio das quais alguns roedores tentavam desesperadamente encontrar o seu sustento. Era esta a paisagem que se estendia até ao anel de gêlo que o cercava e que, lenta e inexorávelmente, se ia apertando em torno de si.
Nem sempre tinha sido assim.
Ainda se lembrava bem das planícies viçosas e verdejantes, povoadas por animais de todos os tamanhos que pastavam paulatinamente ou se dessedentavam nos pequenos lagos que se formavam nas depressões. Era o seu terreno de caça e bastava um rugido seu para que tudo em redor se quedasse estático e silencioso, naquela expectativa intemporal que precede o pânico da fuga desordenada.
Um dia, vinda de sul, uma nuvem de poeira avermelhada começou a invadir os céus, em questão de dias adensou-se tanto, que o sol quase só podia ser adivinhado. A temperatura começou a descer com uma regularidade sistemática até que um dia avistou a norte o brilho frio e azulado do gêlo que avançava.
Entretanto as plantas foram fenecendo e os animais que delas se alimentavam foram rareando.
Na longa peregrinação para sul, fugindo ao glaciar que parecia cada vez mais próximo, as circunstâncias iam piorando de tal forma, que pela primeira vez na sua já longa vida sentiu as agruras da fome.
Um dia estacou estarrecido: À sua frente, vindo de sul, deparou-se com outro glaciar!
Terminara a caminhada!
Ainda se ia conseguindo alimentar parcamente de alguns roedores, que no fundo consumiam mais energia para ser apanhados, do que a que forneciam àquele enorme corpo debilitado. Os glaciares de norte e de sul acabaram por se unir, primeiro a nascente e depois a poente. O anel de gêlo foi-se apertando cada vez mais, de tal forma que, olhasse para que lado olhasse, apenas conseguia divisar uma parede de gêlo assustadoramente mais próxima.
Na sua ânsia de fuga, o animal começou a caminhar ao longo do glaciar, na fútil esperança de encontrar uma brecha que lhe permitisse escapar daquele gelado e mortal abraço.
De repente estacou! Algo no interior da espêssa camada de gêlo lhe chamara a atenção.
Cristalizado no glaciar jazia um animal da sua espécie. Apanhado na armadilha branca, parecia vivo, apresentando um ar de espanto que dava uma aparência de vida ao corpo mumificado da criatura.
Confrontado com a visão de alguem da sua espécie, confundido pelo desespero e pelo sofrimento, o animal soltou um uivo, um uivo prolongado e pungente como o uivo de uma sereia de nevoeiro em noite fria e de cerração. Era um uivo que encerrava todas as emoções: A saudade da vida passada, o mêdo de um futuro cruel e a angústia de uma solidão profunda.
Nesse momento único e sublime tudo à sua volta mudou. De repente o prado floriu, manadas de animais corriam e saltavam despreocupadas e o grasnar dos pássaros que evoluiam sob a luz intensa do sol, ecoava nas alturas.
Tomado de súbita alegria, o animal sentiu a vida fluír-lhe no corpo. Endireitou-se, fitou com intensidade a múmia que parecia olhá-lo de dentro do gêlo, lançou um urro de alegria e num arranque fulminante correu na sua direcção.
A enorme massa do seu corpo embateu com violência na parede de gêlo e com o crâneo desfeito, o animal escorregou lentamente para o solo enquanto a vida lentamente o abandonava.
Terminara enfim o seu sofrimento e ele morria suavemente acompanhado pelas dôces recordações de um passado feliz e despreocupado.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 27 de Fevereiro de 2004

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