sexta-feira, 27 de fevereiro de 2004

UM LIVRO?!
Provávelmente por mera simpatia, o Pedro Guedes, autor do Ultimo Reduto, desafia-me a passar os meus pensamentos intímistas à forma de livro, no que foi seguido por alguns visitantes regulares do meu blogue que sempre me manifestaram grande simpatia.
Costuma-se dizer que um homem só se realiza após ter um filho, plantar uma árvore e escrever um livro.
Pois bem, pelo que me toca, tive quatro filhas, por môr da minha profissão já plantei centenas de árvores, faltando-me aparentemente escrever um livro.
Ora eu acho que, de uma forma abençoada, este blogue acaba por ser o meu livro, pelo que me realizo completamente com escritos que insisto em reputar de despretenciosos. Pretencioso sim, seria ter o despudor de publicar um livro que provávelmente só interessaria a meia dúzia de pessoas.
Para além disso há ainda um enorme e insuperável obstáculo: Não sei escrever um livro!
Tenho ideias repentinas sobre as coisas, tenho uma escrita demasiado sintéctica e tenho a maior dificuldade em arranjar uma "cola" que dê consistência aos meus textos. Seria o mesmo que querer construir uma casa, tendo os tijolos mas sem possuir o cimento.
Agradeço a simpática e tentadora ideia do Pedro Guedes, mas acho que podemos partir do principio que este blogue é o meu LIVRO.
Nesta prespectiva acho que poderei afirmar a minha plena realização: Tive filhos, plantei árvores e, finalmente, parece que escrevi um livro.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 27 de Fevereiro de 2004

A MORTE DO DINOSAURO (Fábula acerca da auto-extinção)

O grande predador bateu com a cauda no chão, enquanto que com uma das pequenas mãos tentava evitar que um parasita se lhe entranhasse na pele escamosa. O seu aspecto era deplorável. As escamas, antes brilhantes e coloridas, apresentavam-se acizentadas e baças, deixando entrever por baixo um esqueleto que anteriormente se escondia atrás de uma portentosa massa muscular. As garras há muito tinham deixado de estar aceradas e temíveis, esboroando-se e partindo-se por manifesta falta dos minerais necessários.
Com melancolia o enorme animal fitou a paisagem desolada que se desdobrava perante a sua vista. Uma terra calcinada pelas geadas, pontilhada ali e acolá por alguns arbustos mais rústicos. As colónias de liquens emprestavam um tom amarelado a algumas manchas esparsas, no meio das quais alguns roedores tentavam desesperadamente encontrar o seu sustento. Era esta a paisagem que se estendia até ao anel de gêlo que o cercava e que, lenta e inexorávelmente, se ia apertando em torno de si.
Nem sempre tinha sido assim.
Ainda se lembrava bem das planícies viçosas e verdejantes, povoadas por animais de todos os tamanhos que pastavam paulatinamente ou se dessedentavam nos pequenos lagos que se formavam nas depressões. Era o seu terreno de caça e bastava um rugido seu para que tudo em redor se quedasse estático e silencioso, naquela expectativa intemporal que precede o pânico da fuga desordenada.
Um dia, vinda de sul, uma nuvem de poeira avermelhada começou a invadir os céus, em questão de dias adensou-se tanto, que o sol quase só podia ser adivinhado. A temperatura começou a descer com uma regularidade sistemática até que um dia avistou a norte o brilho frio e azulado do gêlo que avançava.
Entretanto as plantas foram fenecendo e os animais que delas se alimentavam foram rareando.
Na longa peregrinação para sul, fugindo ao glaciar que parecia cada vez mais próximo, as circunstâncias iam piorando de tal forma, que pela primeira vez na sua já longa vida sentiu as agruras da fome.
Um dia estacou estarrecido: À sua frente, vindo de sul, deparou-se com outro glaciar!
Terminara a caminhada!
Ainda se ia conseguindo alimentar parcamente de alguns roedores, que no fundo consumiam mais energia para ser apanhados, do que a que forneciam àquele enorme corpo debilitado. Os glaciares de norte e de sul acabaram por se unir, primeiro a nascente e depois a poente. O anel de gêlo foi-se apertando cada vez mais, de tal forma que, olhasse para que lado olhasse, apenas conseguia divisar uma parede de gêlo assustadoramente mais próxima.
Na sua ânsia de fuga, o animal começou a caminhar ao longo do glaciar, na fútil esperança de encontrar uma brecha que lhe permitisse escapar daquele gelado e mortal abraço.
De repente estacou! Algo no interior da espêssa camada de gêlo lhe chamara a atenção.
Cristalizado no glaciar jazia um animal da sua espécie. Apanhado na armadilha branca, parecia vivo, apresentando um ar de espanto que dava uma aparência de vida ao corpo mumificado da criatura.
Confrontado com a visão de alguem da sua espécie, confundido pelo desespero e pelo sofrimento, o animal soltou um uivo, um uivo prolongado e pungente como o uivo de uma sereia de nevoeiro em noite fria e de cerração. Era um uivo que encerrava todas as emoções: A saudade da vida passada, o mêdo de um futuro cruel e a angústia de uma solidão profunda.
Nesse momento único e sublime tudo à sua volta mudou. De repente o prado floriu, manadas de animais corriam e saltavam despreocupadas e o grasnar dos pássaros que evoluiam sob a luz intensa do sol, ecoava nas alturas.
Tomado de súbita alegria, o animal sentiu a vida fluír-lhe no corpo. Endireitou-se, fitou com intensidade a múmia que parecia olhá-lo de dentro do gêlo, lançou um urro de alegria e num arranque fulminante correu na sua direcção.
A enorme massa do seu corpo embateu com violência na parede de gêlo e com o crâneo desfeito, o animal escorregou lentamente para o solo enquanto a vida lentamente o abandonava.
Terminara enfim o seu sofrimento e ele morria suavemente acompanhado pelas dôces recordações de um passado feliz e despreocupado.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 27 de Fevereiro de 2004

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2004

ESTUPEFACÇÃO E DESGOSTO.
Por que acho que não devemos ignorar a unica certeza da Vida, tenho-me regularmente pronunciado algumas vezes sobre a morte. Comentei-a quando a vi rondar a vida de um dos meus netos quando ele foi atropelado, comentei-a também aquando a trágica morte em directo do futebolista Miklos Fehér. Falei mesmo sobre a lenda do encontro em Samarcanda, que é o paradigma da sua inevitabilidade. Todos estes comentários sempre partiram do princípio que é da natureza humana a luta pela vida, a luta contra a morte.
Infelizmente nem sempre é asssim.
O filho de um grande e velho amigo, um rapaz saudável, educado e sociável, embora reservado, decidiu, assim sem mais nem menos, pôr termo à sua vida.
Fazia um mês de diferença da minha terceira filha, exactamente vinte e nove anos. Lembro-me de quando nasceu e uma fotografia tirada no calçadão de Copacabana lembrou-me que bonito bébé ele era. Cresceu, foi bom aluno, tirou o seu curso de Psicologia e arranjou um emprego a que se dedicava com afinco. Tudo parecia ir bem.
Na noite de Sábado de Carnaval, após o jantar, disse aos pais que ia dar uma volta e só se voltou a saber dele quando o seu cadáver foi encontrado dilacerado pelas rochas da encosta norte da Ponte da Arrábida.
A camara de vigilância de um estabelecimento próximo registou a chegada do automóvel. Arrumou-o cuidadosamente, retirou a antena do rádio e guardou-a no porta luvas, depois fechou o carro e ao afastar-se saíu do raio de acção da referida câmara. Sabe-se agora o desfecho de tão trágico passeio.
Algumas reflexões prepassam na minha cabeça: Não as suas razões, pois essas levou-as com ele, o que me atormenta é imaginar a dôr interior, a angústia e o sofrimento que poderão levar alguém a tão tresloucado acto e só essa reflexão por si própria, provoca-me um imenso desgosto.
Diz-se muita vez que o suícidio é uma fuga, que é um acto inútil. Talvez, no entanto deve haver um limiar de sofrimento intímo e silencioso que parece legitimá-lo.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 25 de Fevereiro de 2004

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2004

RECORDAÇÕES DO MEU PAI (IV)
Na linha de outros posts sobre este assunto (se alguem os quiser consultar poderá procurar nos arquivos de Novembro, entre os dias 12 e 13), apetece-me hoje falar do meu Pai, de quem tenho cíclicamente dolorosas e verdadeiras saudades.

Quando eu era criança, um amigo muito querido lá de casa oferecia todos os anos o pinheiro de Natal. Era sempre um abêto, nativo da Serra da Cabreira, muito bonito, bem formado e com dimensões bastante consideráveis. Igualmente todos os anos, o referido abêto era colocado com as suas parcas raízes num vaso com a ideia de que iria posteriormente ser plantado no jardim. E não há dúvida que todos os anos, a transplantação, acompanhada de um certo ritual, era formalmente executada. Na realidade, nenhuma das árvores sobreviveu ao ar frio e fortemente marítimo que sempre nos assolava o jardim a partir do mês de Janeiro.
Um ano a árvore era maior do que o costume. Imediatamente se instalou a discussão de como iria ser instalada, já que a sua altura era superior ao pé-direito da casa.
Corta-se-lhe o tôpo, alegava a minha Mãe, "Nem pensar!" retorquia ele, afirmando que isso desfiguraria a árvore.
Então corta-se por baixo, aventei tímidamente eu. "Está doido? E vamos destruir-lhe as raízes? Como a plantaremos depois?"
O impasse parecia instalado até que surgiu a ideia luminosa: A casa era térrea, com soalho de madeira sobre uma caixa de ar, portanto com um machado partiram-se umas tábuas no canto da sala e lá se encaixou o enorme abêto, sem lhe danificar o tôpo ou as raízes.
Passou o Natal.
A árvore, como as outras transitou para o jardim e lentamente faleceu, até se tornar num lenho sêco e enegrecido.
No canto da sala, o buraco aberto para salvar a árvore permaneceu.
Cuidadosamente dissimulado por um tapête, foi resistindo ao tempo. De inverno, o frio penetrava por ele, obrigando-nos todos a ficar mais junto da lareira enquanto o meu Pai resmungava acerca de um pertenso carpinteiro que ele nunca chamara.
Um dia, anos mais tarde, uma tia nossa, desavisada, caíu no buraco. Foi um sarilho! Ficou magoada, barafustou, gritou e acabou no hospital transportada por uma ambulância tão barulhenta como ela.
Nesse dia, com ar grave e severo, o meu Pai tomou uma decisão: "Temos de mudar de casa!"
Dois ou três meses depois mudámos de casa, deixando definitivamente para trás um buraco nêgro e traiçoeiro no soalho, além de vários cadáveres de árvores de Natal espalhados pelo jardim.
E era assim o meu Pai...

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 20 de Fevereiro de 2004

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

10.500
Jamais me passaria pela cabeça, naquela escaldante noite de Julho, em que o termómetro marcava mais de 40º e Portugal ardia plácida e insistentemente (fosse pela mão dos incendiários, pela incompetência política ou pela falta de técnica dos seus bombeiros), que esta aventura que apelidei de "VELHO DA MONTANHA" chegaria alguma vez às 10.500 visitas.
Havia descoberto a Blogosfera uns dias antes e a ideia de fazer uma espécie de diário electrónico, a partir do qual pudesse partilhar com os mais intímos alguns pensamentos e reflexões, pareceu-me uma boa ideia, até porque quase todos os que amo se encontram longe.
As reflexões e pensamentos, de carácter intimísta, que me parece serem a base deste blogue, não parecia que tivessem um interesse desmedido e por isso, à medida que o contador evoluía e os "feedback" se multiplicavam, a minha surpresa aumentava.
É certo que muito enriqueci o meu conhecimento, que partilhei muitas opiniões, que concordei, que discordei, que agradeci e que me zanguei.
Nesta altura, e ao olhar para o numero 10.500, penso naqueles que nos antecederam, que se interessaram, que se interrogaram, que se angustiaram e que se alegraram pela pura partilha de reflexões, pensamentos e ideias em geral, como decerto se alegrariam por ter tido ao seu alcance uma ferramenta tão universal e poderosa como a que nós temos hoje em dia.
A todos os que visitaram este blogue, que eu que não sou dado a modéstias, considero despertensioso, envio os meus sinceros agradecimentos por tudo o que partilharam comigo.

Por uma questão de curiosidade, abaixo transcrevo o meu primeiro post:

A CHEGADA À BLOGOSFERA.
Após uma trajectória de intercepção, caracterizada por um larguíssimo angulo de ataque, efectuei algumas órbitas de observação à Blogosfera que se me apresentava, convidativa, mas misteriosa e talvez um pouco assustadora.
O panorama não era claro, mas o apêlo era algo irresistível e assim decidi-me a aterrar, disposto a enfrentar tanto os perigos como as compensações.
Portanto, aqui estou eu! Arranhando a textura da superfície, um pouco assustado e de certa forma solitário, tentando perceber básicamente o que é e o que não é, qual Ciber-Hamlet, presa da suprema dúvida existencial.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 29 de Julho de 2003



Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 19 de Fevereiro de 2004

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2004

SERÁ QUE DEUS SE TORNOU INVISÍVEL?...
Qual não foi o meu espanto quando ao consultar o magnífico blogue do Henrique, que tem o título "E Deus tornou-se visível", me deparei com este único post:

Tenham paciência!
Os meus últimos posts provocaram um ataque de um leitor despeitado que, depois de lançar para o ar algumas insinuações acabou por ser desmascarado e revelou a sua intenção destrutiva. E como não posso esperar que toda a gente seja bem-educada e não estou para ser insultado nem responder na mesma moeda, estou a pensar o que hei-de fazer. Estou indeciso em relação a continuar com o blog porque já sei que reacções desse género são inevitáveis e não tenho formação para lidar com gente mal-educada. Para já, os últimos posts passarão para o antigo testamento e este novo testamento fica em stand-by, até ver. Tenho a informação necessária para o refazer se assim o decidir.


Como este único anúncio não prmite "feedback", atrevo-me a usar o meu blogue para lançar um apêlo ao Henrique:

Meu Caro. Como em tudo, e você sabe-o bem, há do melhor e do pior. Esse tipo de energúmeno que se infiltra nas nossas caixas de "feedback" e parte para a simples destruição, insulto gratuíto e ofensa soez, só se sente compensado quando os seus intentos resultam em estrago visível.
São como esses vírus informáticos que a coberto de insuspeitas mensagens se infiltra nos nossos sistemas com a única intenção de os destruír.
Por isso, caro amigo, não lhes faça a vontade. Não prive os seus amigos verdadeiros de tão agradável e substancial convívio. Desistir agora seria a vitória do destruidor.
Claro que você é, e será sempre senhor da sua vontade, mas não queria deixar de lhe fazer sentir que seria injusto privar-nos do seu convívio, só porque um idiota (e há tantos...) se entreteve a chateá-lo e a ofendê-lo. Parafraseando o pôvo, e neste caso com redobrada propriedade, venho lembrá-lo que "vozes de burro não chegam ao céu"!
Amigo Henrique, daqui lhe lanço um apêlo: Não nos abandone!

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 16 de Fevereiro de 2004

terça-feira, 10 de fevereiro de 2004

UMA SINGELA HISTÓRIA DE AMÔR.
(Factos reais passados há muito pouco tempo...)

Eram um casal normalíssimo! Ambos pessoas de idade, Bodas de Ouro cumpridas, filhos criados, netos amigos e alguns bisnetos ainda balbuciantes. No fundo, uma Vida em conjunto com todas as suas alegrias e tristezas. Afinal nada mais que um casal unido pudesse esperar após mais de 50 longos anos de convívio, primeiro de paixão, depois de amôr, seguidos fatalmente de amizade, dedicação e até de uma saudável dependência.
Até que um dia ele adoeceu.
Adoeceu de uma doença degenerativa, longa e dolorosa e que infelizmente só poderia têr um desfecho possível.
Ela, uns anos mais nova, mulher corajosa e dedicada, decidiu cuidar do marido doente, declinando com doçura as várias soluções que os amigos e familiares iam sugerindo, numa mesericordiosa prespectiva de a poupar ao trabalho e ao sofrimento.
Foram três longos anos! Anos de dôr e dedicação.
De dôr, por ver a pessoa com quem tinha partilhado toda uma Vida, presa de sofrimento e incapacidade das quais sabia bem não haver retôrno possível.
De dedicação, pois jamais um esgar de impaciência, desistência ou desespêro lhe prepassaram sequer pela fronte apesar do penosos sofrimento que decerto a assolava.
O máximo que se lhe escutava, no seu jeito dôce e paciente, é que estava muito cansada, embora de boa saúde.
Um dia ele morreu!
Ela, mulher forte e saudável, passadas 24 horas sucumbiu a um fulminante, e aparentemente inexplicável ataque cardíaco.
Compungido, o médico que assistia o casal, explicou à família atónita que o fim daquele tremendo stress, longo de três anos, tinha subitamente cortado a produção de adrenalina, estimulada incessantemente pelos anos de calvário, o que lhe provocara aquele inesperado ataque de coração.

Ainda bem que a ciência nos ajuda e explica o que por vezes parece inexplicável.
Na minha prespectiva, mais terrena e prosaica, prefiro pensar que ela morreu simplesmente de amôr!

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 10 de Fevereiro de 2004

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2004

A BALANÇA DE PESAR AS ALMAS (II).
Confesso que fiquei surpreendido com a ressonância que o post anterior obteve, não só no meu blogue, mas também no blogue do Henrique, além de alguns outros de diversas proveniências.
Por outro lado, ainda mais me espantei com a diversa tipologia dos comentários: Uns completamente simbólicos, outros de índole mística, outros ainda de cariz mais científico. Também os havia meramente filosóficos e até tão somente cinematográficos.
É realmente curioso observar para que lado cai a areia quando a lançamos ao ar!
De certa forma, de uma maneira um tanto subreptícia, nuns casos, e totalmente descarada em outros, deu-me a ideia de ter sido posta em causa a minha afirmação de que o facto dos "21 gramas" serem o pêso da alma, não era sequer uma ideia original (sendo isto totalmente independente da qualidade do filme, é claro!).
Para estes cépticos, embora em 1988 a Internet fosse apenas um projecto pouco menos que experimental, deixo aqui dois links que abordam o assunto, há já muito tempo ventilado: Nem que seja por uma questão de curiosidade, passem uma vista de olhos neste link e neste outro.

“The inescapable conclusion is that we have now confirmed the existence of the human soul and determined its weight,” Dr. Becker Mertens of Dresden said in a letter printed in the German science journal Horizon." (Penso que não será exacatamente o "24 Horas", e embora seja uma citação, decerto será possível confirmá-la.)

A única coisa que pretendo é não acharem que estou a levantar uma questão nova sobre o título de um filme. Essa prática não me assenta e confesso não têr paciência para algum tipo de insinuações.
Ao Henrique deixo os meus agradecimentos por ter encarado de forma tão desasombrada e descomplexada um "desafio" que, pelo menos para mim, foi extremamente gratificante.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 9 de Fevereiro de 2004

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2004

A BALANÇA DE PESAR AS ALMAS.
Fui hoje confrontado com o anuncio da estreia de um filme da autoria de Alejandro Gonzalez Igñarritu, basco certamente, com o título de "21 Gramas" e com o subtítulo em inglês "how much does life weigh?"
Eu não vi o filme, e não tenho mesmo a certeza se o verei, mas sei onde o autor foi beber a inspiração.
No final dos anos 80 li uma pequeníssima notícia no jornal, que de imediato referenciei ao meu círculo mais íntimo (ainda hoje conferi e todos se lembram), que noticiava um insólito estudo levado a efeito por um médico alemão. Este clínico trabalhava numa enfermaria onde permaneciam vários doentes em estado terminal e, colocando balanças de precisão nos pés das camas, verificou um decréscimo súbito de 21 gramas no preciso momento da morte. O mais estranho, referia o médico, é que o pêso de 21 gramas era uma constante em todos os óbitos, independentemente do pêso ou sexo da pessoa falecida.
Na altura, fascinado com a notícia, opinei com a minha habitual arrogância que 21 gramas era o pêso físico da "alma".
Hoje, quase vinte anos depois e recordado por um realizador de cinema que considera os 21 gramas o pêso da "vida", e não própriamente da "alma", volto a questionar-me sobre o assunto.
A considerar verdadeiro este facto, que acredito ser científico, considero que os 21 gramas são realmente o pêso físico da Alma. Segundo julgo saber, e o Henrique poder-me-á esclarecer, segundo a lei da entropia nada se perde mas tudo se transforma, sendo que me pergunto para onde irão esses 21 gramas, de forma súbita e repentina, já que as explicações de perda de fluídos, etc... jamais poderão explicar este fenómeno e a perda de energia também não serve, pois a energia em si própria não tem pêso, pelo menos mensurável, penso eu.
Estes 21 gramas não foram inventados pelo Sr. Igñarritu, pois eu já conhecia a existência deste fenómeno há cerca de vinte anos, portanto deve haver, e há com certeza, registos destas experiências. Assim pergunto-me como é que a ciência não se debruça sobre este mistério?
Talvez mesmo porque seja um mistério, condição com a qual a ciência não se dá bem! Talvez porque a ciência se preocupe apenas em demonstrar o que já se sabe. Talvez porque a ciência não seja realmente ciência, ou mesmo porque a ciência talvez seja cobarde.
Na parte que me toca, 21 gramas é um pêso razoável para uma Alma e ficaria bem satisfeito se alguem conseguisse constatar, no momento exacto da minha morte, que o meu corpo havia perdido exactamente 21 gramas.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 6 de Fevereiro de 2004

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004

ENCONTRO EM SAMARCANDA.
O destino por vezes parece que nos é imposto. De uma forma ou de outra, na sorte e no azar, somos compelidos a imputar ao destino tudo o que acontece, principalmente o que não nos é particularmente favorável ou aquilo que no nosso intímo sabemos ser de nossa responsabilidade.
Acerca deste assunto, muito tenho meditado na lenda do “Encontro em Samarcanda”.
Reza a história que um rico mercador árabe, percorrendo o buliçoso mercado de Bagdad, encontra a Morte e esta informa-o que dentro de três dias lhe vai levar o mais querido dos seus servos. Aflito, o mercador chama o servo, dá-lhe um saco de moedas e ordena-lhe que viaje para Samarcanda, cidade longinqua e cosmoplita, situada na movimentada Rota da Sêda, enganando assim os desígnios da Morte.
Dois dias depois, deambulando pela cidade, o mercador encontra de novo a Morte, e esta, surpreendida pergunta-lhe: “Que estranho! Que fazes aqui?”. Atrapalhado, o mercador respondeu: “Exerço o meu míster. Porque perguntas isso?” ao que a Morte responde: “Por nada de especial. Apenas fiquei espantada pois tenho amanhã um encontro com o teu servo em Samarcanda e não te esperava encontrar na Cidade.”
Esta lenda, com todo o seu encanto, levanta no entanto uma questão importante: E se o mercador não tivesse enviado o servo para Samarcanda? Será que desta forma enganaria a Morte?
Esta fábula soberba revela-nos um pouco do mistério que cobre a inevitabilidade, ou não, dessa aparente fatalidade a que chamamos destino. Trata-se pois de uma questão sem resposta: Ou servo morreria em Samarcanda, ou a Morte, fatal e inevitável, não teria marcado o seu encontro com ele se não se tivesse verificado a fuga para Samarcanda.
História sábia, não há dúvida! E com ela apenas podemos aprender uma coisa: De alguma forma podemos talhar o destino, pois de contrário será o destino fatalmente a talhar-nos a nós, o que não é rigorosamente a mesma coisa!
Pelo menos, há algo que o destino nos pode, e deve, proporcionar: Uma longa e séria reflexão sobre aquilo que pensamos e esperamos da Vida, porque na realidade o único destino inevitável que mais tarde ou mais cêdo nos espera, é o verdadeiro "Encontro em Samarcanda", já que a Morte é a única inevitabilidade que conhecemos a partir do dia em que nascemos.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 5 de Fevereiro de 2004

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2004

CRÓNICA MARCIANA.
(Dedicado ao grande mestre Ray Bradbury)

Foto da superfície de Marte.

A planície inóspita e avermelhada estendia-se à sua frente como um mar encapelado de ondulação estática e cristalizada. Olhou para a sua direita e espreitou para o fundo de uma gigantesca fenda aberta na planície como se um ciclope a tivesse cavado com as mãos. Não lhe conseguia vêr o fundo, fosse por a luz solar não o atingir, fosse pela enorme profundidade a que se encontrava.
Meditou na presistência da corrente de água, já há muito desaparecida, e nos milhares de anos que levara a cavar tão formidável fôsso, enquanto, por qualquer razão ainda não desvendada se dirigia, revolta e furiosa, para o polo, aonde ainda hoje permanecia sob a forma de uma espêssa e quase continental camada de gêlo.
Pequenos redemoínhos alaranjados, criados por uma aragem presistente e contínua que corria rente ao solo, dançavam à sua volta como se fossem azougados diabretes. Súbitas e fortes rajadas de vento surgiam e desapareciam quase instantâneamente, provocando uma sonoridade parecida com o estalar de um chicote que, devido à rarefacção da atmosfera, soava de uma forma quase longínqua.
A constante poeira alaranjada toldava-lhe a visão dificultando-lhe a marcha.
Estava cansado! Cansado e sedento!
Decidiu que era hora de descansar e premiu com decisão o botão vermelho de um pequeno dispositivo que transportava na mão.
Instantâneamente acenderam-se as luzes e um batalhão de técnicos, envergando batas e toucas brancas, percipitou-se para ele ajudando-o a desenvencilhar-se do complexo fato sensorial que envergava, abrindo fechos, desligando conexões e procedendo a complexas leituras instrumentais.
Meio cambaleante sentou-se numa cadeira a um canto da sala e bebeu quase de um trago o copo de água que alguém lhe oferecia.
Passados cerca de oito minutos, na superfície poeirenta e agreste do planeta vermelho, um pequeno robot com cerca de metro e meio de altura e de aspecto vagamente humanoide, virou-se lentamente em direcção ao sol, desdobrou um complexo par de paineis solares e imobilizando-se por completo, iniciou a sequência automática de recarga das baterias, ficando a aguardar, com aquela paciência de que só as máquinas são capazes, que um outro cientista se enfiasse no sofisticado fato sensorial, enviasse uma ordem por rádio, para oito minutos depois recomeçar a sua infindável peregrinação pelas sêcas e agrestes areias marcianas.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 4 de Fevereiro de 2004

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2004

A RAPÔSA E AS UVAS.
Decerto que todos conhecerão a famosa fábula da rapôsa que tenta esforçadamente chegar a um cacho de uvas numa latada. Ao constatar a impossibilidade, conclui: "Estão verdes, não prestam!" e apressa-se a seguir o caminho. Nessa altura cai uma parra, e ouvindo o ruído, pensando tratar-se de uma uva, a rapôsa vira-se num guloso ápice.
É uma fábula velha como o tempo e que todos lemos em alturas diferentes da nossa vida e na qual tanta vez nos estribamos para critícar os outros.
Aparentemente fui fazendo uma série de escolhas ao longo da Vida, escolhas que fui sublimando numa espécie de pensamento filosófico global, e que tem servido de suporte a um alargado conjunto de posições morais que de certa maneira tenho vindo a pregar, não sem uma pontinha de soberba.
São posições sobre a minha forma de estar e de encarar a Vida, sobre as quais muitas vezes me manifesto, por vezes com alguma sobranceria, arrogando para mim uma certa superioridade moral.
Há tempos, por exemplo, discutia com um amigo meu o fenómeno do consumismo. No fundo, dizia eu, embora difíceis, as minhas escolhas tinham-me levado para um caminho que contrariava toda a cultura de consumismo que me rodeava, contentando-me eu apenas com o pouco necessário para levar uma vida digna, etc...
À noite, naqueles momentos de meditação que antecedem o sono, lembro-me amiúde da fábula da rapôsa e das uvas. Será que escolhi mesmo? Será que foi uma escolha assumida ou apenas um mero mecanismo de defesa, criado por alguém que de facto não conseguiu atingir os patamares materiais de quem o rodeia? E se me saísse uma lotaria, seria a mesma pessoa?
Eu gostava de acreditar que sim, mas a dúvida, há anos instalada, parece impossível de derimir.
Até que ponto somos senhores das nossas escolhas? Até que medida nos podemos orgulhar de nós próprios? Até que ponto não seremos simples joguetes de complicados mecanismos psicológicos criados para nos manter equilibrados?
De qualquer forma, se o caso fôr esse, a existência de um mecanismo tão paliativo dá-me a prova insofismável da suprema sabedoria e bondade do Criador que tão engenhoso dispositivo instalou em nós, protegendo assim a integridade psicológica da sua criação, tal como um electricista coloca um fusível para proteger o resto de uma complexa instalação eléctrica.

Diário de Bordo da Nave Espacial "Terra" - Tempo Estelar da Nova Era - 2 de Fevereiro de 2004